

BODAS DE PALHA
Ainda com a vestimenta lutuosa que usa por respeito isento de pêsames, lava a parede, o chão, o rejunte e as trincas dos ladrilhos do piso da cozinha. Pelas frestas entre um quadrado e outros dias antigos retornam com a clareza das manhãs outonais às margens do rio. A primeira refeição do primeiro dia de casamento. Engoliu, de uma vez, um ovo frito inteiro, tingindo o branco do linho da toalha com os fios respingados da gema mole que explodiu seus amarelos entre a língua e os dentes.
O epílogo do roteiro escrito nos vinte e três anos, encerrado na tarde do dia anterior, era uma questão de tempo e magnitude do último ato. Atirar na própria glote, após o jantar de aniversário de matrimônio, é um arremate honroso para alguém tão obstinado no aprimoramento da sua cultuada deselegância.
Juntou os panos de limpeza, os frascos vazios da água sanitária e do desinfetante, escova, vassoura, rodo e as luvas. Por último, a abotoadura de ouro branco embalada para presente. Amarrou tudo no saco de plástico preto e levou para o depósito de lixo comunitário, no final da rua do condomínio.
No frescor de lavanda do banho recém tomado, afrouxou o cinto do robe de seda, alongou os braços, aprumou a coluna e aspirou a brisa úmida do começo da noite. Com cuidado, guardou as partituras das peças de Mahler. Regulou o banco, sentou-se ao piano e tocou Jesus Alegria do Homens.
Maria Balé