

CRIME PERFEITO
A manhã de Sol brilhante aquecia a alma. Olhei os transeuntes no semáforo e aqueles rostos desconhecidos pareciam me cumprimentar à moda antiga. Senti uma tranquilidade e uma segurança incríveis. Adoraria parar para conversar com todos, saber de suas histórias. A ansiedade que sentia outrora parecia um sonho evaporado. Logo mais, faria o meu depoimento sobre um tratamento que estava fazendo há três meses no Hospital de Clínicas em São Paulo.
Confesso que comecei desacreditando da eficácia, mas o resultado foi compensador e eu me sentia em congraçamento com o mundo e, principalmente, comigo mesma: tinha vencido. Joguei um beijo e um abraço imaginários para toda a humanidade. Para falar a verdade, já me propusera a ser a primeira a expor a minha experiência. Cheguei com antecedência e já me inscrevi.
Minha plateia consistia em 35 companheiros com o mesmo tratamento, sendo que alguns continuariam, pois não conseguiram êxito pela falta de empenho. É uma pena, mas gostaria que meu exemplo pudesse surtir algum efeito em alguns. Quando me chamaram, senti como se fosse uma atriz com o comando completo de sua personagem. Primeiro, olhei para todos que me fitavam com um misto de curiosidade e esperança. Limpei a garganta e, sentindo-me dona da situação, comecei o meu relato.
***
“Foi apenas um segundo. Uma amiga nos apresentou e, lá estávamos lábio com lábio, apaixonados. No começo, foi um pouco, como direi… Estranho. Bem, mas o que fazem a paixão virar amor são as diferenças. Encontrávamo-nos espaçadamente. Depois, descompassadamente loucos, ficávamos horas juntos. Ele me dava apoio e conforto quando estava com problemas existenciais.
Nosso relacionamento era de puro êxtase. Nos momentos mais íntimos, quase que nos sufocávamos, como se um fosse o rio do mar do outro. Mas aquilo estava me incomodando. Eu já não me sentia dona de mim. Era como se todos os meus atos dependessem de sua anuência e, cá entre nós, não suporto a submissão.
Minha concentração no trabalho dependia dele. Minha criatividade dependia dele. Então, o invitável aconteceu: comecei a odiá-lo, apesar de que, quando o fitava, mal dava conta de meu descontrole e corria para ele como o marinheiro que segue a sereia hipnotizado pelo seu canto.
Eu queria abandoná-lo, mas cada vez mais ele se impunha e eu o aceitava. Perdera o senso de vergonha. Era uma fissura… Meu Deus, esse é o termo real para descrever esse louco desejo. Era um sentimento doentio, mas que dava prazer. Ele se adentrara nas minhas vísceras, na minha pele, na minha alma.
Aquilo estava se transformando numa peça de Lorca ou num filme de Almodóvar. Sangue, muito sangue! Tudo muito visceral. E um dia, depois de várias sessões de paixão, êxtase e loucura, acordei muito mal física e espiritualmente. O estômago embrulhado feito presente não desejado. A boca amarga como fruto cítrico. O moral lá no dedão do pé.
Olhei-me no espelho e minha imagem ria de mim, desconhecendo-me: “que coisa, hein amiga, onde está o seu livre-arbítrio?” Eu punha a mão na boca e ela estava fechada, mas quando olhava para minha imagem ela gargalhava tanto, que eu podia ver até a obturação do último dente. Então decidi, peremptória: vou acabar com ele. E essa foi a gota d’água. Que os outros me recriminassem, tudo bem, mas que a minha própria imagem gargalhe quando eu quero chorar? Ah, aí já é demais. Resolvi matá-lo de forma a não ficar rastros. O crime perfeito.
Numa tarde, enquanto ele repousava junto à escrivaninha, enfiei uma faca em seu corpo esbelto e sensual sem o mínimo dó. Despedacei seu poder, esfarelei sua empáfia junto aos pedaços de seu corpo que fui jogando no triturador de lixo com esgares de prazer. Pela janela da cozinha, o Sol – muitos confidenciam com a Lua, eu com ele – sorriu para mim orgulhoso. Os seus raios dourados fixando ainda mais os últimos resquícios dos lindos cabelos louros de meu ex-carrasco. Onde antes ouvia tambores estrondosos agora violinos tocavam em consonância às batidas de meu coração tranquilo.
Os primeiros dias eu iria sofrer, mas e daí? Toda grande vitória é sempre precedida de muita dor. E a dor enaltece o espírito. Grandes artistas concebem grandes obras em meio à dor. Não é Pessoa? Van Gogh? Amor e dor: uma dualidade necessária à vida, dois sentimentos que correm paralelos no significado, mas coesos na realidade. E, sabendo-me novamente com grife e etiqueta próprias, imaginei os seus pedaços peçonhentos descendo esgoto abaixo, convivendo com os ratos e os dejetos podres dos homens. Quem iria procurá-lo em estado líquido e no submundo a que pertence?
Livrar-se de um vício que lhe dá prazer, mas que, ausente, restitui-lhe a paz é uma das formas mais dignas de se amar. Sorri satisfeita do meu grande feito. Sem dúvida nenhuma, este será um crime perfeito. Rimando para tudo parecer mais poético e menos patético. Ah, relaxei e gargalhei muito junto à minha nova e única imagem.
Xeque-mate! ‘Touché!’, maldito cigarro.”
FIM
Edih Longo