

UM BOM DIA PARA ESCREVER
Lá fora está fazendo frio, está garoando e Rodolfo sem a mínima vontade de sair da cama. Um bom dia para ler e/ou escrever e definitivamente ficar em casa. Ele não precisava de muitos incentivos para ler, com dezenas de livros acumulando poeira em suas prateleiras e tentando desesperadamente chamar sua atenção. Porém escrever requereria muito mais força de vontade. Em primeiro lugar você precisa ter uma ideia para começar e às vezes isso dá um trabalho danado.
Portanto, ele considerava ler como algo para o preguiçoso e escrever para o trabalhador. Isto não quer dizer que lia com consciência culpada, longe disso. Se lia por divertimento e para relaxar também o fazia para se manter bem informado. Afinal, a informação pode ser uma boa fonte de inspiração além de afiar seus dotes de escritor. Mas tinha que tomar cuidado para não usar isso como desculpa para somente ler e postergar escrever. Bem, não adiantava ficar meditando sobre isso e consequentemente, após realizar alguns exercícios de alongamento (não podia abrir mão de sua rotina de fitness), ele se arrasta para o banheiro – outra rotina que não pode dispensar.
Seu café da manhã geralmente se resume a duas fatias de pão integral, torradas num forninho elétrico ao ponto de se tornarem irreconhecíveis, estrangulando duas fatias de queijo cheddar carregadas de colesterol, tudo lavado por uma xícara de café forte, suavizado por leite desnatado em pó de baixo teor calórico, isento de colesterol e com zero de gordura (para compensar o cheddar).
Agora estava pronto para começar. Senta-se à frente de sua escrivaninha, diante do seu desktop de três gerações atrás, e tenta anotar algumas palavras do que promete ser um conto curto muito interessante. Note que foi usado o verbo anotar e é precisamente o que tentou fazer escrevendo à mão. Como de hábito, por sinal, pois era firme adepto da teoria do cérebro-à-mão que reza que as ideias são transmitidas melhor pelo delicado e complexo processo nervoso que liga o cérebro à mão. Se nunca ouviu falar desta teoria é possível que nem exista e então, quem sabe, ele poderia escrevê-la um dia. O fato é que ignorando o monótono zumbido e o irritante brilho da tela do computador (sim ele o mantem ligado para salvar as aparências) prossegue, de caneta na mão e com a melhor das intenções, na dura tarefa de converter ideias em palavras. De repente sua filha irrompe no quarto e, apontando um dedo acusador para a sua mão, profere uma observação indignada:
“À mão, Pai, e com o computador ligado”?
Rodolfo olha para sua mão para ver se tem algo errado com ela mas, com exceção de uma unha preta resultante da trajetória errática de um martelo rebelde que deveria estar enfiando um prego na parede, não vê nada de errado. Mas ela insiste.
“E com uma caneta tinteiro além disso, meu deus do céu em que século você vive?”
Ela falou essas palavras num tom sarcástico que teria sido mais apropriado caso o tivesse 2/2 surpreendido tentando gravar um bloco de pedra com um dente de dinossauro ou, pior, tentando escrever com um supositório.
Rodolfo olha novamente para sua mão, desta vez estreitando seu foco na sua velha e fiel Parker 51 com tampa dourada que lhe tinha sido confiada por seu pai, tal como um rei passaria seu cetro ao príncipe-herdeiro. Tinha-lhe servido maravilhosamente bem durante seus longínquos dias de colegial e faculdade e teve a sorte de nunca tê-la perdida ao contrário de muitas chaves e óculos.
Timidamente Rodolfo responde que é somente um rascunho que será transferido ao ogro eletrônico tão logo for completada sua obra prima. Incrédula, ela balança a cabeça em desaprovação e vai conferenciar com sua mãe sobre a ingrata tarefa de trazer seu pai para o século vinte e um.
Finalmente sozinho, começou a ponderar sobre o ocorrido. O que há de errado em escrever com uma caneta, e mais especificamente com uma clássica caneta- tinteiro, a rainha dos instrumentos de escrita, cuja pena de ouro fora lapidada por anos de uso a ponto de deslizar suavemente sobre uma folha de papel virgem morrendo de vontade de ser estuprada por tão nobre instrumento? Que diabo, é apenas uma caneta-tinteiro e não uma pena de ganso! Para dizer a verdade, às vezes ele se sentia fora de sintonia especialmente quando via suas netas martelando ou patinando nos seus SmartPhones com a destreza de um crupiê manobrando sua roleta Entretanto nada podia emular a perfeita simbiose entre uma mão segurando uma boa caneta e um cérebro.
Confessava para si mesmo que escrever diretamente no computador era mais fácil para editar seu texto mas algo parecia estar faltando quando palavras digitadas começavam a aparecer na tela como se dirigidas por uma mão robótica. Uma vez assimiladas na caixa mágica as coisas realmente se tornavam mais fáceis uma vez que se podia apagar ou deslocar palavras ou sentenças inteiras como se tivesse a vara mágica de Harry Potter e escolher e imprimir em dezenas de cores, tipos e tamanhos diferentes. Agora, nada substituía o prazer de brigar com o corretor de texto esnobando sadicamente as absurdidades sugeridas e finalmente arquivar, para a posteridade, seu precioso documento numa pasta eletrônica onde o único problema em achá-lo é se lembrar como foi salvo e aonde.
Sem dúvida, um dos grandes prazeres é ter uma impressora ligada e exultar com a sensação de ser seu próprio editor e dono de gráfica. É claro que seu castelo pode ruir num momento crucial, se depois de ter dedicado uns bons quinze minutos tentando elaborar uma passagem particularmente espinhosa, você recebe uma facada nas costas por causa de uma traiçoeira queda de força que manda seu texto para o Valhalla.
Algo que não aconteceria com sua boa e fiel amiga Parker.
Gerald Maurice Leon Misrahi