

Um tempo de pensar, um tempo de atitude tomar
Nasci lá pelas bandas do Rio Tietê, num vilarejo próximo de rio e serra. Sempre eu, meu pai e minha mãe, que eram dois de pouco estudo, mas sabedoria muita no dizer e no fazer. Não me arredava de perto deles, bom ter família e amigos da terra, sentir aconchego. Em lugar pequeno as coisas não mudam, nunca tem gente chegando, mais gente partindo. Banho de rio, correria pelas ruelas, esta era a diversão.
Agora tudo que eu conto, é porque acho que é sério preciso.
Gostava de ter uma família, meu pai era bom mesmo, de dar gosto. Minha mãe pequena, fraquinha, mas criatura doce. Aos seis anos só me faltava uma coisa, um companheiro pra brincar de noite, de esconde-esconde, no quarto, puxar o pé um do outro e dizer que era assombração. Um mano. Como eu queria!
Os moleques da rua me ensinaram o quê fazer.
— Òi, você fica de pé, abre as perna, levanta os braço pra cima, depois se estica todo e abaixa os olho pra trás por entre as perna e chama por um irmão.
Assim feito assim acontecido.
A mãe emprenhou. Alegria em meu coração, nem pensar em uma menina, nossa casa tinha só dois quartos, onde por uma menina toda de cor-de-rosa? Não, estava tudo pronto para ele.
Comecei por ouvir os gritos, tapava os ouvidos, queria bater na porta e tirar de lá aquela mulher, mas meu pai disse que era a parteira, estava só ajudando.
Saí de casa pra não ouvir a mãe berrar. Voltei de noitinha e fui ver meu irmão. Ao invés de um bebê gorducho vi um escurinho todo enrugado, pequeno e feio. Uma doidera em meu coração.
Minha mãe sempre foi devota dos santos, ajudava o padre na igrejinha.
Meu nome é Francisco José, meu irmão Benedito Antônio, sempre chamados de o Zé e o Benê.
Esperava que meu irmão tomasse corpo pra gente correr atrás das carroças, puxar o rabo dos cavalos e arreliar com os cocheiros, mas o mano não crescia, na idade de oito anos alcançava a altura da mesa de cozinha, mais ou menos setenta e oito centímetros.
Pai e mãe se preocupavam, dez anos, onze e ele sempre do mesmo tamanho. Eu beirava os dezessete anos e era bem alto. Foi um custo sair do vilarejo à procura de um doutor.
O lugar onde morávamos era a Vila Nossa Senhora da Conceição, só havia um Posto de Saúde e o médico vinha de alguma cidade mais próxima às vezes Tietê ou Tatuí, uma vez por mês.
Fomos pra Tietê num Posto de Saúde bem melhor que o nosso, com enfermeira e dois médicos de plantão.
O atendimento demorou umas duas horas, era um doutor grande, loiro, falava que nem se entendia. Ele pegou meu irmão e gritou para nós:
— It´s a dwarf.(duórf)
Não entendemos, percebi que era inglês,lingua que aprendia no colegial, meu inglês era fraco, não dava para traduzir.
Minha mãe repetia, Seu irmão é um dórfi, que é isto?
O médico mostrava nosso tamanho e o de meu irmão, a muito custo compreendi que era um anão, eu já tinha visto num circo em Tatuí.
Foi então que tomei em mim o gole de um pensamento.
Expliquei aos meus pais, eles choraram e voltamos para casa, minha mãe só dizia às amigas que o filho era um dórfi.
E assim ficamos conhecidos como o Dórfi e o irmão do Dórfi. Entramos para a lista dos apelidos: a Zarolha, o Coqueiro Torto, o Pela Hora da Morte e agora o Dórfi e o irmão do Dórfi.
Os alimentos estavam muito caros e Seu Joaquim sempre dizia, Está tudo pela hora da morte,
e assim ele ganhou um dito afeiçoado e diferente.
Meu pai era pedreiro-carpinteiro e dos bons, segui o ofício dele. De certa feita fez um carrinho com restos de madeira pro meu irmão, quando estava com dois anos, eu saía com ele empurrando o carrinho, e o moleque batia as mãos sorrindo, gostava de passear. Eu já estava cheio de tomar conta dele
Foi pensar e fazer levei-o para o alto de uma ladeira e soltei o carrinho, o Dórfi adorou, gritava de felicidade, o carro descia e eu torcendo pra acabar com tudo, e foram pedaços de madeira para todos os lados, a ladeira terminava em uma poça d`água enlameada e o Dórfi saiu ensopado, sujo de barro e ileso. Minha mãe nos recebeu aos berros, lavou o caçula, meu pai pegou o chicote, levei uma coça que fiquei três dias com a bunda ardendo.
Como já fiz por contado segui o ofício de meu pai, aprendi com ele a fazer muros, calçadas, construí barracos.
Eu tinha tento mesmo era nos estudos. Ia com outros meninos e meninas da Vila para a cidade de Tietê. Estava atrasado, por culpa da jardineira que sempre quebrava em dias de chuva e as faltas aconteciam no final do segundo ciclo. Gostava da escrita, das contas e de
ler. Não gostava de geografia e história, saber coisas diferentes de pessoas loiras, olhos azuis sem nossa semelhança, gente de cidade grande onde caía uma chuva gelada e ficava tudo branco. Bom mesmo era tomar sol e banho de cachoeira.
Cheguei aos dezoito anos, era tempo de amar e eu não sabia, ela veio de mansinho, miúda e bonita, tocou meu coração, eu disse, Rosa, quando ficar rico vou casar com você.
Ela respondeu, se comprazendo sem gentileza,
- Deus me livre, você tem uma sina e não quero ser parte
- Qual é minha sina?
- Ficar sempre solteiro cuidando de seus pais e do mano. Quem é que vai querer tomar conta de um anão?
Voltei para casa arrasado, não sabia ter uma sina, pensei nela e chorei a noite inteira. Eram tolicezinhas que por minha memte marinhavam.
Desse dia em diante coloquei umas ideias na cabeça, tinha um motivo pra vencer na vida e resolver minha sina. Foi pensar e fazer. Fiz cursos de especialização na cidade de Tietê. Arrumei emprego de mestre de obras, dirigia os operários e era chamado para fazer serviços em toda a redondeza, empreiteiros e arquitetos me disputavam, comecei a ganhar dinheiro.
De inventar muito se ganha.
Armei um plano e todo fim de semana, ia para Tietê. Durante dois anos trabalhei como um danado e a mim mesmo cumpri o prometido. Sozinho sou, sendo sozinho
careço, sempre nas estreitas horas. Mas sozinho sempre fico não. O tento que eu tinha era um tento bem pensado.
Procurei a Rosa e expliquei porque ela casava comigo e não tinha de participar de minha sina. Ela aceitou.
A gente não carecia de se separar
Vamos todos sair do vilarejo, tenho na minha cabeça e em meu coração que nunca vou deixar de cuidar da velhice de meus pais, e eles vão receber certezas.
- Meu irmãozinho Dórfi, nunca eu vou deixar você.
O bem pensado é bem feito. Eu e meus amigos pedreiros construímos em Tietê, em bonito bairro residencial, duas casas térreas, ventiladas, uma com quatro quartos para mim, a Rosa e os filhos sonhados. A outra, de minha família, tem rampas para os velhos e prateleiras mais baixas pra o irmãozinho. As casas se comunicam por um portão no quintal. Assim a Rosinha não precisa participar de minha sina, mas ela tem bom coração, se necessário sei que vai me ajudar.
Tudo se resolve quando o coração é consultado.
Maria Helena Nogueira Whitaker